Urbanismo tático: tintas, cones e a transformação das cidades

Em setembro deste ano as vias no entorno da escola Anne Frank, no bairro do Confisco, em Belo Horizonte, receberam pintura de solo, com faixas para a travessia de pedestres e marcas de delimitação nas faixas de circulação de veículos. Além disso, foram instalados vasos feitos de pneus reciclados, cones de sinalização e mobiliário para descanso. No final de semana seguinte, entre os dias 20 e 22 de setembro, coincidindo com o Dia Mundial Sem Carro, o trânsito de veículos motorizados foi interrompido e o espaço se transformou em uma Rua Aberta, com shows, atividades culturais e espaço de convivência para os moradores da região. No mês seguinte, em outubro, alunos de 8 a 10 anos da escola Anne Frank participaram de uma oficina de montagem de placas de trânsito, escrevendo mensagens que passariam a compor a sinalização viária da região.

Placas de sinalização desenhadas pelos alunos da escola Anne Frank no bairro do Confisco, em Belo Horizonte. Foto: Rafael Tavares / Octopus Filmes

Este conjunto de atividades, realizadas pela BHTrans em parceria com o Wuppertal Institute e com o apoio de diversas organizações da sociedade civil, tinha como objetivo abrir caminho para a criação de uma Zona 30, a terceira a ser implantada na cidade em 2019. As Zonas 30 possuem dispositivos para acalmar o tráfego, diminuir a velocidade dos veículos motorizados e privilegiar o fluxo de pedestres e ciclistas. Além disso, eventualmente promovem a ampliação e requalificação das áreas de convivência e dos espaços de permanência. A Zona 30 do Confisco teve como objetivo específico aumentar a segurança viária na região e criar acessos seguros à escola. Durante as vistorias que antecederam a ação não havia sequer uma faixa de pedestres nas proximidades da instituição de ensino, mesmo com 93% dos alunos declarando que acessam a escola a pé.

Antes e depois: intervenção urbana no bairro Cachoeirinha, em Belo Horizonte. Foto: Octopus Filmes
Antes e depois: intervenção urbana no bairro Cachoeirinha, em Belo Horizonte. Foto: Octopus Filmes

As outras duas intervenções do tipo em Belo Horizonte aconteceram no bairro Cachoeirinha (entre 26 e 29 de abril de 2019), por meio da parceria com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), e na rua Diamantina, durante o festival CURA – Circuito Urbano de Arte (entre 5 e 15 de setembro). Em comum, as três iniciativas utilizaram intervenções temporárias de baixo custo, foram realizadas através da articulação entre o poder público e a sociedade civil e se propuseram a gerar um impacto em maior escala do que a própria intervenção. Esta abordagem, chamada de urbanismo tático, tem sido utilizada em diversas cidades do mundo nesta segunda década do século XXI. “O urbanismo tático consiste em ações pontuais de pequena escala que visam a mudança de comportamento e de cultura a longo prazo. Isso é importante pois estamos falando da utilização da rua, que é um elemento familiar para os habitantes das cidades. A partir do momento em que conseguimos visualizar que a rua pode ser melhor utilizada pelas pessoas, já temos um ganho, afinal existe uma parcela significativa da população brasileira que nunca viu espaços desenhados para pedestres e ciclistas. Ao mostrá-los em escala real, no espaço da cidade, a transformação se torna tangível e fica mais fácil implementar uma solução definitiva”, define Danielle Hoppe, Gerente de Transportes Ativos do ITDP Brasil.

Três anos de ações

Intervenção urbana na Praça Getúlio Vargas Filho, em São Paulo. Fotos: Miguel Jacob
Intervenção urbana na Praça Getúlio Vargas Filho, em São Paulo. Fotos: Miguel Jacob

O ITDP Brasil tem realizado ou apoiado iniciativas de urbanismo tático desde 2016, a partir de uma primeira intervenção no bairro de São Miguel Paulista, em São Paulo, que buscou transformar a praça Getúlio Vargas Filho em um ambiente mais seguro e convidativo para a permanência de pessoas. A região tem um alto índice de colisões e atropelamentos devido à alta velocidade dos veículos e ao desenho viário, que privilegia a circulação de veículos motorizados. Durante a ação, realizada em parceria com a Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito (BIGRS) e NACTO-Global Designing Cities Initiatives, foi identificada uma redução de 30% nas velocidades veiculares, aumentando a segurança para todos.

Intervenção temporária e implantação definitiva do projeto no bairro de Santana, em São Paulo. Fotos: Thomas Cavallieri / WRI e Thiago Diz
Intervenção temporária e implantação definitiva do projeto no bairro de Santana, em São Paulo. Fotos: Thomas Cavallieri / WRI e Thiago Diz
Intervenção temporária e implantação definitiva do projeto no bairro de Santana, em São Paulo. Fotos: Thomas Cavallieri / WRI e Thiago Diz

No ano seguinte, em 2017, duas interseções viárias no bairro de Santana, também em São Paulo, receberam pintura de solo, alargamento de calçadas, mobiliário urbano temporário e ações lúdicas e educativas para a ativação do espaço. Os dados coletados antes e depois da intervenção mostraram que houve uma redução de 75% no número de pessoas atravessando fora da faixa e um aumento de 40% no respeito de motoristas à preferência dos pedestres. Além disso, a velocidade dos ônibus nas conversões foi reduzida em 23% e o espaço de espera dos pedestres foi aumentado em três vezes.

 

Em 2018, a Cohab José Bonifácio, na zona leste da capital paulista, foi escolhida pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP) para uma nova intervenção com o apoio do ITDP Brasil e de organizações parceiras, desta vez dentro do programa Rota Escolar Segura. Ainda em 2018, no escopo de um projeto sobre Eficiência Energética na Mobilidade Urbana da agência de cooperação alemã GIZ, o ITDP Brasil ofereceu capacitação sobre ruas completas a técnicos e gestores de Sorocaba (SP), dando suporte à realização de uma intervenção temporária que transformou vagas de estacionamento em calçadas mais largas na principal rua comercial do centro da cidade.

 

Em outra oportunidade, com um projeto iniciado ainda em 2017 por meio de uma oficina de capacitação sobre mobilidade a pé oferecida à CET-Rio, o ITDP Brasil realizou, em conjunto com a Prefeitura do Rio de Janeiro (através das Secretarias de Urbanismo e de Conservação, além da CET-Rio) uma intervenção temporária no bairro da Tijuca nos dias 18 e 19 de novembro de 2018. Os técnicos identificaram problemas como calçadas estreitas, insegurança no embarque e desembarque de ônibus e travessias de pedestres mal posicionadas, entre outros. O trabalho de preparação levou sete meses, contou com duas oficinas, envolveu mais de 100 pessoas e estava alinhado com o Plano Estratégico 2017-2020, que prevê diretrizes específicas de qualificação urbana com foco no pedestre e a implantação de Ruas Completas.

 

Já em maio de 2019, logo após a realização da primeira ação de urbanismo tático na capital mineira, no bairro Cachoeirinha, o ITDP Brasil foi responsável pelo processo de engajamento e oficinas de desenho colaborativo que resultaram numa nova intervenção em São Paulo, desta vez no bairro da Penha. A iniciativa foi mais uma colaboração, com as organizações BIGRS, NACTO-GDCI e a Prefeitura.

Intervenções temporárias, mudanças permanentes

Boa parte das intervenções implementadas no Brasil tem curta duração, permanecendo por alguns dias ou semanas. No entanto, o processo de construção e planejamento leva meses. Em geral, medidas que buscam redistribuir o espaço urbano tendem a encontrar resistências dentro e fora dos órgãos que administram o sistema viário e realizam o planejamento urbano, além de uma reação muitas vezes negativa de parte da população, que teme perder as vagas de estacionamento ou acredita que a redução da velocidade máxima pode impactar negativamente a fluidez do trânsito e seus deslocamentos diários. 

O trabalho prévio de sensibilização, capacitação e construção de alianças com técnicos, gestores e com a população envolvida é fundamental. A empreitada que precede a intervenção geralmente conta com muitas reuniões, oficinas, planejamento, desenho de projetos, costuras políticas para o apoio local, levantamento e produção de dados sobre a área escolhida. Este conjunto de ações é fundamental para que a tática escolhida esteja alinhada com uma estratégia mais ampla. O objetivo a ser alcançado pode ser a construção de um projeto viário definitivo após os testes ou “simplesmente” provocar a mudança cultural em técnicos e na população, por isso é importante considerar o urbanismo tático como uma ferramenta para a transformação da realidade de forma mais duradoura.

Segundo Eveline Trevisan, coordenadora de Sustentabilidade e Meio Ambiente da BHTrans e responsável pelas intervenções na capital mineira, as três intervenções realizadas em 2019 ajudaram a romper a inércia do poder público e diluir as resistências junto à população: “Belo Horizonte foi pioneira na implantação de projetos de acalmamento de tráfego e priorização de pedestres e ciclistas na região central da cidade, ainda na década de 1990. Mas parece que a falta de continuidade fez com que o automóvel tomasse boa parte do espaço urbano e do planejamento municipal, tendo como resultado vias perigosas, com alta velocidade e espaços de baixa qualidade para as pessoas”, afirma. 

As resistências iniciais às ações em Belo Horizonte não foram poucas, com questionamentos dentro da administração municipal, idas e vindas de projetos, matérias contrárias na mídia e muitas horas em reuniões para convencimento. O resultado da primeira intervenção temporária no Cachoeirinha, visualmente muito bonita e com grande acolhimento no bairro, ajudou a abrir o caminho: durante uma reunião do Observatório da Mobilidade Urbana de Belo Horizonte (que envolve órgãos da Prefeitura de BH, sociedade civil e academia para monitoramento da implementação do plano de mobilidade da cidade), Eveline fez uma apresentação sobre a ação e colheu elogios inclusive de setores que antes se posicionavam contra a iniciativa. Isso permitiu que um projeto definitivo fosse desenvolvido para a região, cuja implantação deve ser concluída até ainda este ano.

Intervenção temporária no bairro Cachoeirinha, em Belo Horizonte. Foto: Danielle Hoppe / ITDP Brasil

Em Belo Horizonte, as ações também ajudaram a sensibilizar a população: entre setembro e outubro - depois das três intervenções realizadas na capital mineira -, mais de 10 pedidos de Zonas 30 foram protocolados por munícipes para diferentes regiões da cidade. “Não são pedidos para instalação de lombadas ou de uma faixa de pedestres em um ponto específico, mas sim de Zonas 30, ou seja, de áreas que propõem uma mudança significativa na função do espaço urbano”, comemora Eveline.

Em São Paulo o ITDP Brasil atuou em conjunto com outras organizações (BIGRS, NACTO-GDCI, WRI e entidades locais) e, desde 2016, estabeleceu uma interlocução direta com a Secretaria de Mobilidade e a CET-SP, promovendo oficinas, seminários e atividades que buscavam sensibilizar para a importância de mudar a lógica do espaço urbano, privilegiando o deslocamento de pessoas e a segurança viária. Assim como nas demais cidades, as propostas de intervenções temporárias encontraram algumas resistências dentro e fora da administração pública. Mas as barreiras foram sendo superadas, as atividades foram realizadas e o resultado deste trabalho contínuo apareceu de forma mais visível em 2018, quando os técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego tomaram a liderança do processo, escolheram uma área, desenvolveram o projeto, fizeram oficinas com a comunidade e implantaram uma intervenção viária na Cohab José Bonifácio, inicialmente de maneira temporária, mas transformada em solução definitiva alguns meses depois.

Situação anterior, intervenção urbana e projeto definitivo na Cohab José Bonifácio, em São Paulo. Fotos: Ankita Chachra / NACTO-GDCI e Vivi Tiezzi / BIGRS
Situação anterior, intervenção urbana e projeto definitivo na Cohab José Bonifácio, em São Paulo. Fotos: Ankita Chachra / NACTO-GDCI e Vivi Tiezzi / BIGRS
Situação anterior, intervenção urbana e projeto definitivo na Cohab José Bonifácio, em São Paulo. Fotos: Ankita Chachra / NACTO-GDCI e Vivi Tiezzi / BIGRS

Para Danielle Hoppe, Gerente de Transportes Ativos do ITDP Brasil, a sequência de atividades desde 2016 representou um ganho para as cidades brasileiras, ajudando a disseminar uma ferramenta de baixo custo e com ação mais rápida que a forma tradicional de construção das cidades. O próximo passo é superar o desafio de consolidar as soluções em projetos definitivos. “O urbanismo tático não deve encarado apenas como um evento de sensibilização, ainda que seja muito efetivo para esse objetivo, mas também como uma ferramenta para testes e ajustes em projetos antes de investir grandes somas em obras civis. As intervenções são muito impactantes enquanto acontecem, mas as prefeituras podem incorporar esta ferramenta como uma etapa de construção do projeto definitivo, inclusive no aspecto da gestão de recursos, viabilizando a compra de materiais como tinta e balizadores, por exemplo”, afirma. De qualquer forma, um número cada vez maior de cidades está experimentando a abordagem do urbanismo tático, abrindo espaço para repensarmos o uso do espaço urbano e para construirmos soluções que estimulem a mobilidade sustentável e reduzam a letalidade do trânsito.

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Sobre este autor
Cita: ITDP Brasil. "Urbanismo tático: tintas, cones e a transformação das cidades" 02 Dez 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/929253/urbanismo-tatico-tintas-cones-e-a-transformacao-das-cidades> ISSN 0719-8906

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